Decomponham-me

No dia em que entrar em estado avançado de decomposição serei feliz. Se o incómodo não fôr gordo, gostava que fosse a cabeça a primeira a ser atropelada pelo processo. Com a cabeça separada do resto do corpo seria bem mais fácil conseguir finalmente analisar à distância os defeitos e dourados do meu Eu.
Subtraiam-me as pernas. Não correria desalmado para a estupidez como é meu hábito, vendia-me ao ócio de permanecer na horizontal a maior parte do meu dia e passaria a depender de alguém para me fazer chegar à já assumida estupidez.
Subtraiam-me os braços. Acabavam os abraços, os convencionais apertos de mão, os gestos obscenos, a escrita por mão própria (e como isto pioriaria a minha caligrafia!) e a minha última esperança de continuar a nadar. Seria pouco mais do que uma bóia com fôlego.
Subtraiam-me os sinais do meu corpo. Deixaria de ter pinta. Tudo bem, piada fácil.
Subtraiam-me o coração - porque do resto dos órgãos nunca dependeu a minha existência - e fugiriam as taquicardias. Com elas o sorriso sentido antes de adormecer, o motivo para escrever, as preocupações com o irmão, a nostalgia teimosa que me persegue, a depressão de Domingo, a devoção a um ser superior e essa nobre arte de amar.
À distância, a cabeça cantaria vitória.