"Porque a mais razoável das loucuras é aquela partilhada com o mundo." "Para um mundo razoável esqueçam a loucura das partilhas.."

Wednesday, November 01, 2006

O drama da mosca

No dia em que os vivos desentopem consciências e acariciam os mortos o céu está exactamente no mesmo sítio que muitos outros céus: lá fora. Eu, cá dentro, partilho o quarto com uma mosca arisca que se apoderou deste espaço como se aqui não dormisse eu há 21 anos.
Tentei fotografá-la mas o flash intimida-a, daí, numa acção de mau-senso, desafiei-me a conviver com ela. Deitei-me - como se deitam os humanos, na horizontal - e deixei que em mim pousasse. Escolheu o braço esquerdo e fez questão de sublinhar que, se não me mexesse, dali não sairia.
Falou-me de como aqui chegou. Confessou-me que não falava muito. Falava pouco e cada vez menos. Reconheci a frase e interrompi-a para me assumir portador de mesmo vício. Ela continuou com a ilusão com que chegou. Chegou para vêr tudo e fazer muito, passou a querer vêr muito e fazer o possível, hoje contenta-se por vêr e sobreviver. Discordei com o comodismo mas entendi que uma criatura com aquele porte frágil não se dá a luxos existenciais.
Apercebi-me do tique nervoso que a acompanhava. Enquanto falava e ouvia esfregava as patas da frente como que indicando satisfação maléfica. Sorri para dentro e lembrei-me que tiro o relógio sempre que escrevo. Quando o tique se confunde com a superstição e vira hábito coleccionamos as características pelas quais seremos lembrados e, garanto-te, não me esquecerei do teu esfregar de patas harmonioso.
Em tom tremido desabafou-me a traição da Gertrudes. A mosca companheira que deixou do outro lado da rua antes de decidir mudar de vida e de casa. A Gertrudes trocou-a pelo amarelo encantado de uma abelha e eu perdi-me na curiosidade em saber que espécie nasceria da relação entre uma mosca e uma abelha. Recebi a sua dôr e embalei-a nas elevações do meu peito, local para onde se havia mudado sem pedir licença.
Não me lembro se adormeci ou simplesmente me perdi em pensamentos, mas a verdade é que quando lhe quis falar ela já lá não estava. Levantei-me para beber água e abri a janela para que quando quisesse lutar pela Gertrudes a mosca não encontrasse obstáculos.

5 Comments:

Anonymous Anonymous said...

É nestes momentos que gostaria de ser mosquinha...
Beeeeijo*

mónica

10:39 PM

 
Blogger Helena Borges said...

Tu tambem falas pouco e cada vez menos...connosco...

1:34 PM

 
Blogger Fio de Beque said...

para o caso de aceitares tenho um desafio no meu blog.

9:32 PM

 
Blogger Fio de Beque said...

digo eu que este teu blog é demasiado bom para deixares de escrever nele...

3:52 PM

 
Blogger Helena Borges said...

Afinal não sou a única que me queixo desta tua birra com o blog. Faz lá as pazes :p

12:27 AM

 

Post a Comment

<< Home